Sento-me e olho os plátanos,
Sobre a mesa a chávena e o pires, um copo com água mineral e o indispensável cinzeiro para depositar os cadáveres de cigarros envelhecidos em cinza, olhos os plátanos e puxo da máquina de escrever, coloco-lhe uma pétala de rosa e as teclas começam a engasgar-se-me nos dedos, poiso o cigarro no cinzeiro, coço a cabeça e fico na certeza que pouco cabelo sobre o meu céu desprovido de estrelas, e entre duas fumaradas recordo-me que há pouco tempo tesourei-o em pente quatro na barbearia do senhor António!, e começo a escrever sem perceber que uma palmeira me lambe a mão e um dos plátanos me acena como se eu fosse o vento,
A pétala de rosa engana-se e em vez de escrever tecto escreve teto, fico confuso, fico em silêncio, e recorro ao dicionário de bolso, a pétala tem razão, e segundo o novo acordo ortográfico tecto escreve-se teto, luanda perdeu o L maiúsculo e francisco está lixado com F grande, isto é, para não me criticarem de que só escrevo asneiras e que não sei escrever, e que não sei escrever tenho eu a certeza, quanto às asneiras, quanto às asneiras por vezes servem de defesa dos abutres de duas perninhas que proliferam por estas bandas de rios e de socalcos e de paisagens lindíssimas e de xisto e de miséria, é um facto que o douro é lindo, mas também é um facto de que alguns abutres de duas perninhas nunca deveriam ter cá poisado,
Se calhar também tu és um abutre de duas perninhas e também poisaste por estas bandas, diz a pétala enquanto eu retomo ao texto, e o teto do casebre qualquer dia some-se nas umbreiras das geadas de inverno, uma pausa para mudar de pétala e antes de continuar com a estória responder à provocação da pétala, E tens razão também eu poisei por estas bandas, e sabes, ela diz-me que não, nunca o meu pai devia ter vindo para esta terra, mas tu já podias ter ido embora há muito tempo, claro que já mas nunca tive coragem para tal, e porque não vais agora?, reconheço que ela tem razão mas por orgulho encolho os ombros e finjo que não ouvi,
O teto desliza suavemente pelas encostas encardidas do douro, o julho quase a morrer e do agosto nada de novo poderei esperar, a não ser que aconteça um milagre, mas como os milagres são apenas imaginação do ser humano, nada de bom vai acontecer, a pétala ofende-se e reclama que não, os milagres existem, e eu respondo-lhe porque não têm direito a milagres os animais, és parvo diz-me ela enquanto se debate com a tecla do R de acontecer, virgula, o tecto cansado como eu de olhar socalcos e de fome na algibeira, e uma árvore sentada à beira do casebre e que olha o rio, barcos passeiam-se de um lado para o outro, as pessoas acenam-lhe mas ela não lhes liga absolutamente nenhuma, os olhos desencontrados na locomotiva a diesel que qualquer dia deixa de atravessar o pinhão e fica-se apenas pela régua, a pétala explica-me que por motivos de contenção de despesas, e se fechasse-mos tudo o que não dá lucro neste país chegava-mos à triste conclusão que tínhamos de encerrar a fronteira e colocar um letreiro na ardósia da tarde “ pedimos desculpa pelo incómodo, encerrados por motivos de não lucro “,
E voltando ao teto e de tanto esperar e olhar os plátanos e olhar os rios e olhar os socalcos e olhar as paisagens, pega na mochila e com meia dúzia de farrapos zarpa em direção desconhecida,
E muito mais tarde alguém descobre duas pétalas datilografadas à mesa de uma esplanada por um teto que de tanto esperar se cansou, ao lado repousa a velhinha máquina de escrever, um cinzeiro atulhado de beatas de cigarro, porque as outras andam por aí, e em desesperos uma chávena e um pires e um copo…