A casa a tremer de frio e o meu corpo em suspenso entre a porta de entrada e o jardim, a casa na cama ensopada nos cobertores, enrolada nas sombras da noite, vira-se para a esquerda, vira-se para a direita, dobra-se sobre si, e a casa em suspiros longos, puxa de um cigarro, o cigarro em compasso de espera, acende-se e o escuro apodera-se do fumo, e apaga-se, a casa a tremer de frio, não dorme, e o meu corpo à porta de entrada junto ao jardim, e o jardim aos meus pés acabado de acordar, a casa em convulsões nas frestas interiores, e à janela o mar que espera entrar, não, não o mar, não desistas dos meus braços agora, e a casa na ressaca da noite, treme de frio, ensopada nos cobertores,
- não, não desistas de me abraçar, não desistas dos meus braços agora…
Ensopada nos cobertores, a casa treme de frio, levanta-se, veste-se, abre a porta… e quando me apercebo está à minha frente no jardim ensonado, está magra, desossada, os braços picados pelas abelhas e a casa não um malmequer, a casa uma casa, que em pleno verão treme de frio, sobretudo cinzento nos ombros, e não pára de correr, e em círculos concêntricos gira em meu redor, parece a terra em movimento de rotação em volta da lua, eu, eu a tremer de frio, a casa,
- não, não desistas de me abraçar, não desistas dos meus braços agora…, no guarda-fato o meu esqueleto incompleto à espera das frestas da casa e do inverno que de vez em quando poisa no jardim, baixo-me, pego numa flor, e percebo que a flor com medo do meu corpo, da casa, de nós,
A casa treme de frio enrodilha-se nos cobertores da madrugada, engasga-se na tosse, não dorme, não come, pesam-lhe os braços quando alguém acende a luz do quarto, e esqueci-me, esqueço-me que a casa com diarreia, caminhadas infundadas até à casa de banho, diarreia e vómitos, eu transpirava, eu tinha frio, eu ontem, eu há dezassete anos, precisamente a 7 de Maio de 1994, a esta hora a casa, a casa a estrafegar um grama de heroína, e depois, e amanhã?
- E hoje? Hoje não heroína, hoje nunca mais heroína, hoje eu sentado junto ao mar à espera que ela,
Ela vai-lhe crescer o cabelo, pegar na minha mão e levar-me para casa,
- não, não desistas de me abraçar, não desistas dos meus braços agora…
(texto de ficção inspirado no dia 7 de Maio de 1994)
Luís Fontinha
7 de Maio de 2011
Alijó