Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

01
Jun 11

Também eu fui criança, fazia desenhos na terra e escrevia nas paredes da casa, construía papagaios de papel, deitava-me de barriga para o ar, e sonhava, e nas mangueiras via nuvens que aumentavam e diminuíam de tamanho, adormecia, corria no quintal como se fosse uma gaivota, e no céu, no céu pássaros em roncos acelerados rumo ao aeroporto, escrevia frases nas paredes da casa, um Marxista em construção, e nos tempos livres, quando os tinha, nos tempos livres enfiava pregos nas tomadas da cozinha,

 

- O meu cabelo parecia um ouriço-cacheiro, e da ponta dos dedinhos até à cabeleira um formigueiro de abelhas caminhando dentro de mim, e eu criança, e eu sem perceber o significado de electrões, as minhas mãos tremiam e nos lábios penduravam-se silêncios de fim de tarde,

 

E nos tempos livres enfiava pregos nas tomadas da cozinha, agarrava-me ao pescoço da minha mãe e chorava, tinha medo do mar não medo do mar do Mussulo, no Mussulo não lágrimas, sorrisos que se perdiam no areal, e hoje, e hoje como será a ilha do Mussulo, estará mais gorda, será que emagreceu?

 

- E hoje eu não criança, hoje um fantasma enrolado num pano negro, com asas de linho e boca de cacimbo, hoje uma cangalhada de ossos cansados de bater nas portas, e das portas o amontoado de corredores que procuram os ponteiros do relógio, depois da meia-noite eu já não criança, sem triciclo, sem quintal onde pastavam rebanhos de mangueiras, e depois da meia-noite termina o meu sonho, depois da meia-noite sentado junto ao rio, fumo cigarros que me fazem engasgar e de dentro de mim pedacinhos de lua cuspidos contra as árvores,

 

Também eu fui criança, fazia desenhos na terra e escrevia nas paredes da casa, construía papagaios de papel, passeava umas sandálias de couro e nos calções um boneco que nunca me deixava sozinho, parecia uma sombra a correr como Mercedes-Unimog em direcção ao Grafanil, filas intermináveis, e porquê, e porquê deixei de ser criança…

 

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

1 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:02

20
Mai 11

Pela janela vejo uma rosa amarela que sobre a água imaginária do rio dança na espuma do fim de tarde, diz-me adeus, e dos seus lábios crescem nuvens cansadas e quase a desfazerem-se em lágrimas, um carro aborrecido no parque de estacionamento espera e desespera, e deita fumo pela boca, e a rosa amarela aos poucos levada pela corrente do vento, dentro de mim, dentro de mim o cortinado mistura-se com as dezanove horas e quero que o relógio adormeça, e fique suspenso no fim de tarde, mas o relógio não me obedece, e caminha loucamente em direcção à noite.

 

Ele no fim de tarde corria no campo de centeio junto à casa, escondia-se na sombra de um casebre abandonado, e deitado junto aos alicerces envelhecidos pegava numa pedra e começava a escavar na terra húmida, acabava de chover, e na terra as camadas de silêncio começavam a transpirar, tinham febre, tossiam, e da boca escorria uma substância mucosa, mais parecendo palavras emergidas em água, ele às voltas da estátua da Maria da Fonte, e hoje, hoje dizem que um centro comercial se ergue até à lua, como ela está diferente, a cidade

 

- e a cidade em vogais desconexas chama-me e grita-me, e quero ir, e eu vou, eu vou à procura do meu triciclo que dorme no meu quintal, eu vou, eu vou pegar no cordel que deixei preso no portão do meu quintal, e lá bem alto, lá bem alto o meu papagaio de papel à minha espera, e tenho medo que ele já não se recorde de mim e me tenha esquecido, eu era tão miúdo, eu era tão menino…

 

Pela janela vejo uma rosa amarela que sobre a água imaginária do rio dança na espuma do fim de tarde, a claridade do dia começa a fundir-se no espelho do meu quarto, e dentro do guarda-fatos procuro as minhas mãos, e sem elas não consigo pegar na rosa amarela, tocar-lhe na boca, e não as minhas mãos, as minhas mãos em cima da mesa-de-cabeceira à minha espera,

 

- eu era tão miúdo, eu era tão menino, e tenho medo que a cidade me tenha esquecido enquanto eu envelheço ao som da neblina, ela à minha espera,

 

à minha espera a contar os carros que correm em direcção ao Grafanil, perco-me na contagem, eu era tão miúdo, eu era tão menino, e eu mal sabia contar…

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

20 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:54

02
Mai 11

 

 

Jacarandá-africano ou mpingo, e o bicho empanturrado de bolachas com três dentes de marfim partidos, e o menino dá, o menino dá, e o menino à espera no portão pela chegada do avô Domingos, e o bicho preso por um cordel encostado às mangueiras, empanturrado, cansado de dar voltas ao quintal, o menino a contar os carros em direcção ao Grafanil, e o Grafanil já ali, com os bracinhos suspensos no pescoço do avô Domingos, o menino dá comida ao bicho, e o bicho acenava com a cabeça que não, não mais comida, e o menino teimoso a enfiar bolachas e restos de pão.

O avô Domingos estafado, cansado, o avô Domingos com um machimbombo preso às mãos a passear as ruas de Luanda, e todos os dias as mesmas ruas, e todos os dias o menino ao portão à espera de um abraço e a contar os carros em direcção ao Grafanil, e todos os dias o crocodilo em Jacarandá-africano com a boca recheada de bolachas, o menino dá, o menino dá comida ao bicho, e o bicho escondia-se na sombra do fim de tarde.

Jacarandá-africano ou mpingo, e o bicho empanturrado de bolachas com três dentes de marfim partidos, e o menino dá, o menino dá, e o menino à espera no portão pela chegada do avô Domingos, e o bicho vivo, hoje não bolachas nem restos de pão, o bicho hoje vivo, à espera da chegada do avô Domingos, e o avô Domingos ausente, deixou de entrar pelo portão, hoje não avô Domingos, hoje não carros em direcção ao Grafanil, hoje apenas um crocodilo em Jacarandá-africano que todos os dias diz ter saudades do menino e do avô Domingos.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

2 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:45

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