Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

21
Out 14

Do término dia entra em mim o morro da paixão,

ele, vestido de negro, começa a voar sobre os socalcos imaginados por uma louca,

desiste,

e deita-se...

descem as cinzas do sofrimento que dizimam toda a claridade reflectida no espelho da insónia,

aparece o sonho disfarçado de lâmina de xisto,

ouvem-se das encostas húmidas da pele o silêncio emagrecido de uma gaivota,

desiste, e deita-se,

como um corvo sobre a sua presa apodrecida,

há navios esquecidos nos meus lábios,

e do término dia...

nada, só o sangue triste de uma viagem sem regresso,

há um mapa que não me ajuda a regressar,

um clandestino beijo enforcado nas sílabas da noite,

e do término dia...

o amor,

em forma de carrasco,

uma carta escrita na algibeira,

um cigarro inseminado numa qualquer rua de uma cidade sem nome,

e um qualquer húmus redopia junto ao rio,

tenho fome, tenho medo deste amor sem marinheiros,

tenho medo das palavras invisíveis que aportam nos teus seios...

sento-me e finjo caminhar sobre uma fogueira habitada por gajas nuas...

… e nuas flores com um lencinho ao peito,

há espingardas suspensas na bandoleira da manhã,

peço um café,

e adormeço no sisal Outono,

e deixei de perceber o mar,

os rochedos enamorados que desenham no meu peito a solidão,

e esta casa funde-se como se fundem todos os metais...

quando o alicerce do abismo encerra nele o livro proibido,

não tenho janelas no meu olhar,

sinto-te entranhada nos confins de uma ilha inabitada,

sem uma cabana, sem um cão para conversar...

e adormeço no sisal Outono,

e deixei de perceber o mar,

do término dia entra em mim o morro da paixão,

ele, vestido de negro, começa a voar sobre os socalcos imaginados por uma louca,

desiste,

e deita-se...

até que o tempo se transforma em estátua e todas as lâmpadas se apagam,

o meu corpo evapora-se numa amoreira...

e tu perceberás que sou filho da noite,

e tu perceberás que sou a própria noite... só.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Terça-feira, 21 de Outubro de 2014

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:54

07
Ago 12

Deixei que voassem todos os barcos da ilha

pintei sobre a noite

as luzes de papel

e os pássaros de silêncio à procura das estrelas

 

deixei que voassem todas as árvores da ilha

e todas as pedras

e todos os desejos

deixei que voassem os meus olhos

e hoje sou um sonâmbulo curvilíneo

perdido na ilha perdida no centro do oceano...

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:06

19
Mai 12

Os ângulos rectos do amanhecer

junto à hipotenusa da tua boca

em delírio

uma ilha de cristal

acena-me e sou levado pelo vento

como uma abelha louca

em martírio

antes da morte

 

o seno das tuas mamas

tangentes ao limite das ruas paralelas da cidade

um rio em revolta

dando força aos teus braços

que me sufocam

em círculos

triângulos

rectos do amanhecer

 

trigonometria

geometria

poesia

ruas e calçadas

madrugadas

cansadas

Os ângulos rectos do amanhecer

sem palavras para eu escrever.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:30

22
Ago 11

Sim senhor, senhor doutor, perfeitamente, senhor doutor, exatamente, senhor doutor, claro, senhor doutor, fico à espera, senhor doutor,

 

Meio-dia na ilha, as arvores erguem-se e começam a levitar, o farol em intermitências alaranjadas saltitam nos olhos do capitão, o vento e a chuva enrolam-se nos braços da barcaça, rodopia em círculos, e é atirada contra os rochedos,

 

Sim senhor, senhor doutor, e o senhor doutor é que manda, claro, nunca duvidei das suas ordens, e as suas palavras são como um testamento, e se o senhor doutor quiser eu e os rapazes, durante a noite, pregamos uma carga de tareia ao gajo, é só dizer, senhor doutor, e por si faço tudo,

 

A barcaça estilhaçada como a porcelana quando tomba no pavimento, o capitão e os seus homens perdidos na escuridão da noite, e seis sombras em busca da claridade do luar, ouvem-se ais, aqui e ali, no cantinho esquerdo do rochedo, um gritinho de socorro, a expetoração da barcaça a boiar sobre as águas em fúria, um deles tenta deitar-lhe a mão, escorrega e afunda-se, e este já foi, e só faltam cinco,

 

Estou a falar a sério, senhor doutor, eu e os rapazes corremos com o gajo da ilha que nunca mais ouve falar nele, é só dar a ordem, senhor doutor, e não precisa de ser por escrito, as suas palavras, senhor doutor, são linhas de testamento,

 

O outro marinheiro desiste de chegar a terra firme, cruza propositadamente os braços e afunda-se, e alguém aos berros, E só faltam quatro, e dos quatros quer o destino que apenas um sobreviva, e claro, O senhor doutor é que decide, salvamos o capitão?, não, o capitão não, esse miserável falou sempre mal de mim, Afunde-se o capitão!, e o capitão ao fundo, e agora, senhor doutor, só temos três, o cozinheiro Malaquias, o feiticeiro do Francisco e o lambe botas do Pinguim…, o doutor pensa, o doutor pensa, e diz ao seu fiel imediato, Afundem o cozinheiro e o feiticeiro, icem o lambe botas… sempre nos dá algum jeito!,

 

Acordo manhã cedo, o dia ainda de pálpebras cerradas, puxo de um cigarro, o cigarro acende-se e apaga-se, acende-se, guardo o isqueiro no bolso da camisa, os cigarros e o isqueiro incrédulos, e começo a ouvir as suas palavras contra o meu peito,

 

- Mudou tudo, ambos em conjunto, Olha, a avenida 25 de Abril deixou de ser avenida 25 de Abril, diz o maço de cigarros, Olha, a avenida doutor Francisco de Sá carneiro já não é avenida doutor Francisco de Sá Carneiro, as palavras do isqueiro, Que giro, Os plátanos não estão no jardim, segreda o maço de cigarros, olha, pois não, e no jardim dorme um petroleiro, o isqueiro a resmungar para o maço de cigarros,

 

E o meu nome deixou de aparecer na lista telefónica,

 

E o senhor doutor é só dizer, enquanto o malabarista do circo ambulante espeta pregos com a cabeça nas nuvens, eu e os rapazes corremos com o gajo da ilha…

 

Abro silenciosamente os olhos, procuro no teto as nuvens da manhã, ainda não são oito horas e dou-me conta, e felizmente, que tudo não passou de um sonho, felizmente, felizmente…

 

(texto de ficção)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:48

29
Jul 11

Diário de bordo,

 

A carcaça enferrujada a aproximar-se dos plátanos e de boca aberta de espanto cintila na sombra das roulottes do circo ambulante, trapezistas, malabaristas, palhaços, e de tudo o mais, tudo a que estamos habituados a assistir nos dias tranquilos da ilha, e feras indomáveis com pelo de caracol penteado de adamastor quando o vento incorre pela montanha e desagua no número treze da avenida principal, e sua excelência EL Rei passeia-se no seu majestoso equídeo de pele cinzenta e dentes de marfim, e fazendo uma pequeníssima interrupção para explicar que pelo e pêlo são a mesma treta e portanto não se assustem com os erros de ortografia, El Rei passeia-se pelo burgo na companhia de duas damas de honor e três carneiros de estimação, e quatro caninos rafeiros e que às vezes espetam os dentes em ossos alheios,

Os filhos governados e dos netos que ainda não nasceram o futuro sorri-lhes como lamparinas de azeite na capela do monte,

Dizem que a caravana passa e os cães ladram, mas vai-se lá saber porquê e tal como às vezes andam porcos a voar, a caravana pode-se atolar no lodo do rio e os cães atacam, começam pelos tornozelos e terminam nas orelhas, diga-se que alguns deles nem as orelhas se lhes aproveitam, tal como as minhas, pontiagudas e a caminharem para a esplanada do silêncio onde poisa uma tulipa encardida e solitária,

Não liguem porque já tenho a fama de maluco, conceituado e diplomado e com certificação de internamento, e antes de começarmos o grandioso e famosíssimo espetáculo alguma coisa tenho de escrever para entreter o afamado público enquanto a trapezista disfarça as varizes e os palhaços colocam um penico de madeira na cabeça,

A barcaça enferrujada aproxima-se do cais dilacerante e coberto de madeixas encarnadas, os umbigos fintam-se nas folhas de papel espalhadas pelo chão que alguns lambem desafogadamente e brilhantemente e tudo que termine em ente, clemência senhor grita o público encerado pelos candeeiros convexos dos pardais, e eu respondo prontamente que só se for clemente e que clemência não rima com ente, alguém diz que serve detergente, claro que sim, e gente, e mente, e dormente…, eu sei, eu sei, podia ser ausente, e quero lá saber se El Rei está ou não presente,

Finalmente a trapezista sem varizes e os palhaços com rolhas de cortiça nos ouvidos para não distinguirem os berros dos aplausos, EL Rei surge sossegadamente suspenso numa das mamas da trapezista, e alguém não identificado do público borbulha na noite, O cabrão consegui, o cabrão conseguiu…

A carcaça enferrujada a aproximar-se dos plátanos e de boca aberta de espanto cintila na sombra das roulottes do circo ambulante e uma finíssima manta de neblina deita-se sobre a invisível cobertura do circo, o soalho pula pelas frestas das pouquíssimas moedas atiradas para o púbis da trapezista, e a trapezista desiste de sorrir; adormece profundamente nos braços de EL Rei todo-poderoso e senhor benfeitor do burgo.

A ilha transpira e dilata-se nas sobrancelhas do equino que mastiga pastinha elástica, uma buzina acorda da noite e um homem de barbas pelos joelhos cospe fogo e engole garrafões de azeite, e sua majestade ajoelha-se e pede perdão aos cidadãos do burgo encalhado no oceano de pedras e calhaus e de carqueja dormente e com reumatismo.

 

(este texto é de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência e especulação)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:16

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