I Ato (sentado na sanita, “Em busca do Tempo Perdido, À Sombra das Raparigas em Flor, Marcel Proust”, “ Albertina ouvia com apaixonada atenção esses pormenores de toilette, as imagens de luxo que Ester nos descrevia.”
E esqueço-me que estou sentado na retrete e de cigarro na mão, e nunca te disse, meu amor, mas inspiro-me sentado na sanita a fixar os azulejos com os olhos e a puxar as palavras do livro que poisa nos meus joelhos, oiço a tua finíssima voz que se agarra ao espelho da casa de banho, e quando passo em frente a ele, não consigo, meu amor, fecho os olhos e não me quero ver, estou magro, as costelas impressas no peito e a radiografia aos pulmões tudo bem, Nem parece fumador!, diz-me o doutor, outras vezes inspiro-me sentado no bidé e olho a límpida água do fundo da sanita, e acredita, meu amor, vejo o mar,
Chove torrencialmente, o céu ilumina-se e agora já não é a tua voz que oiço, talvez seja deus a ralhar comigo, sim, meu amor, como quando eu em criança serrava a vassoura à minha mãe para o eixo da frente do carro de rolamentos, e ela, Que fizeste, Francisco?, e às vezes o Francisco enrolado no cinto, e escondia-me debaixo da cama e fingia-me de morto, E gritava, Mãe, estou morto, e do meu corpo desengonçado cresciam as algas da primavera, da rua ouvia a voz de uma vizinha O Francisco fez asneiras, e os pregos nas tomadas, e os novelos de linha que lhe roubava da renda, e a renda suspensa dentro da cesta, e o papagaio sobre o Bairro do Hospital,
Mas chove tanto, meu amor, e deus, deus continua zangado comigo, berra, berra, e berra,
O cigarro apaga-se, fecho o livro, poiso-o sobre a máquina de lavar a roupa, limpo o rabinho, puxo as cuecas, pego numa grua e iço as calças do fundo dos tornozelos que mais parecem fios de arame, e num clique a água que se evapora do autoclismo, coisas modernas, meu amor, coisas modernas, porque quando andava na escola em frente ao jardim a casa de banho não funcionava, lá dentro cresciam silvas, Sabes o que são silvas, meu amor?, e os piquinhos prendiam-se à tenra carne esbranquiçada das nádegas, e tínhamos que defecar, de calças na mão, na vinha ao lado da escola,
E o vento entrava em nós,
II Ato (enquanto espero o telefonema dela, “Vigílias, AL Berto”,
“Encomenda Postal
Destino-te a tarefa de me sepultares
No segredo mineral da noite
Com um lápis e uma máquina fotográfica
Depois
…
”, de A noite Progride Puxada à Sirga: Sete poemas do Regresso de Lázaro, 1985)
Meu amor, deus cessou de ralhar comigo, ainda chove, e finalmente oiço a tua voz melódica que me faz esquecer esta caixa de sapatos onde me encontro, o júlio, Lembras-te do júlio, meu amor?, o meu amigo de infância que comigo fazia máquinas de cinema, papagaios de papel e barcos com motores de carros, Sim, meu amor, esse mesmo, sempre com um sorriso nos lábios, ontem lembrei-me dele a correr junto à seara de trigo,
E esta caixa de sapatos começa a inchar, a noite cai sobre mim, calca-me até eu ficar pequenino, muito pequenino, e vejo-me de mão dada com a minha mãe e a minha avó nas ruas de Luanda, e quando me perguntavam o que queria ser quando fosse grande O que queres ser quando fores grande, menino?, eu simplesmente respondia, NADA, não quero ser nada, e realizei o meu sonho, não sou nada, e se fosse hoje, hoje, meu amor, hoje gostava de ser gaivota e voar sobre o mar de Luanda,
E quando poisasse no chão húmido da madrugada acordava a manhã, e sacudia as nuvens do céu,
III Ato (a fumar um cigarro na varanda, “A ordem Natural das coisas”, António Lobo Antunes”, “Quando, depois de me prenderem, me meterem pela primeira vez na ambulância e perguntei onde íamos, responderam-me Isto é a viagem à China, rapaz,…”)
Esta maldita caixa de sapatos, meu amor, esta mísera caixinha minúscula onde me escondo quando passam por mim, não os olho, e finjo ser feliz, e sou feliz com o teu sorriso, e sou feliz com a tua voz e sou feliz com o teu corpo quando sais do banho e nas pequeníssimas gotinhas de água sorrisos de jacintos na tua pele,
Depois vem o vento e leva-nos, o mar, meu amor, o mar quando entra dentro de ti e eu com as minhas mãos escrevo nas tuas páginas de silêncio de noite, ainda chove e finalmente deus deixou definitivamente de ralhar comigo, e os teus desejos que balançam sobre as ondas do luar, pequeníssimos gemidos saltitam de dentro de ti, e o sol, do outro lado do planeta, sorri para nós,
E a noite se apaga nos teus olhos, deixo de ver o teu corpo, da janela chega até mim o teu perfume, e junto ao cortinado um milímetro quadrado de nada entra em nós, agarro-te e beijo-te, e sei que a noite se despede na tempestade, e deixei de ouvir a voz de deus…
(texto de ficção)