Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

24
Jun 11

E ela sobre a minha cama saltitando nos lençóis da noite, percorre cada milímetro quadrado de tecido, e o que faz ela no meu corpo, bebendo do meu suor?,

 

A mosca,

E das asas se fez homem, o meu quarto ténue nos electrões possessos da madrugada quando na rua o rosnar do autocarro da carreira para a ilha do desassossego, as árvores escondem-se na encosta protegida pelas escarpas da literatura, a poesia engasga-se no vento que desce e volta a subir e desaparece no céu, sobre a cama ela deitada transparente como a chuva do inverno desprotegido e bebendo as finíssimas gotinhas do meu suor, sacudo-a com a mão, persistente esta miúda, e volta à posição inicial, alimenta-se dos meus braços entupidos nos cabelos do cortinado, e na parede a passadeira, o outro lado da rua, o semáforo vermelho, e o sangue jorra mas veias da intermitência, alto lá!, e se eu te pregasse umas palmadinhas no rabo?, pumba, era um vez uma mosca,

- Seu grande parvo diz-me ela de soslaio, e parvo porquê?, o arco-íris da pela temperado com lasanha e rodelas de cenoura, o xarope para a tosse na tigela de barro, a constipação suspensa no estendal, e quem a quiser que a leve,

No banco do jardim,

“Era uma vez uma mosca” a estória completa de Marilu, puta travesti e poetisa, cançonetista dos bares de Alcântara, viajava nos táxis de Lisboa e terminava a noite junto ao Tejo nos braços do mendigo que fazia equilibrismo no arame da vida, das algibeiras silêncios de pão e restos de tabaco, literatura pura a estória de Marilu, poesia que se escrevia quando o corpo subia e descia as árvores na pensão da ruela, o sino da capela subia as escadas e tropeçava na sombra, alto lá!, e se eu te pregasse umas palmadinhas no rabo?, pumba, o xarope de cenoura a escorrer no lava-louça e já no interior da garganta vira de direcção e some-se nos pulmões apedrejados pelo fumo do cigarro,

- Podes deixar o dinheiro sobre a mesa-de-cabeceira,

No guarda-fato,

Dançam estrelas de papel e cordéis de manteiga, o triciclo com o acento de madeira do Brasil pendurado no cabide, cuecas e soutiens, cobertores e lençóis, e tudo a cinco euros, o cigano faz desconto, duas cinco euros, menos só de borla PORRA!, de borla não, deixa aí o dinheirinho, quantas notas já pousaram na mesa-de-cabeceira?, não se lembra, esqueceu-se quando menino cavava a terra molhada com as unhas da mão e as vogais pareciam batatas a acordarem das profundezas do púbis, na lentidão das horas, os morcegos,

- E quantas?,

Frases deixei cair na tua mão,

Quando no meu rosto ainda habitavam os vinte anos, quando o meu corpo tombava na tempestade das noites de Lisboa, quantas?, quantas moscas com estórias, e poetisas sem estória, e quantas abraçadas ao mendigo com pãezinhos de leite e chocolate ao fim da tarde, a carrinha segue-o, segue-a, e se eu matasse a mosca com um sorriso?,

Pumba.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:10

26
Mar 11

 

 

Olho pela janela, chove. Coloco os óculos no meu rosto emagrecido, estou magro, às vezes cansado, faço umas brincadeiras com a caneta e dou conta que na minha mão nada, comporto-me como se lá tivesse poisada uma pena, dou umas baforadas no cachimbo de água, olho fixamente para a folha de papel que em cima da secretária adormece, e aos poucos as palavras começam a alimentar-me o cansaço,

 

“ Junto ao mar, 26 de Março de 2011

 

Meu querido,

 

Toda a tarde esperei por ti, mas tu hoje não vieste. Senti a tua falta meu desespero, e recordei quando entras em mim e dentro da minha cabeça ditas as palavras que eu escrevo no vento, mas tu meu desespero, tu hoje não vieste.

Não comi quase nada hoje.

A tristeza entrou-me pela porta, e reparei que no jardim as árvores estão tristes, talvez porque choveu, talvez porque hoje é sábado.

Não comi quase nada hoje, e durante a tarde, à espera que viesses, andei descalça junto ao mar, e a areia alivia-me este cansaço que dentro de mim habita, este desassossego de não estar feliz nunca, de não conseguir adormecer sem os teus carinhos, sem as palavras que me ditas e eu as escrevo no vento.

Toda a tarde esperei por ti, mas tu hoje não vieste. Senti a tua falta meu desespero, e não percebo porque chove tanto e o mar tão calmo, o mar calmo e a minha mão espera pela tua, e sei que te escondes em qualquer pedacinho desta praia, mas por mais que eu olhe, não te encontro.

Meu querido desespero, se me estás a ouvir vem junto a mim, pega na minha mão, pega na minha mão e leva-me para dentro do mar; se me estás a ouvir, preciso de ti…

 

Eu sempre tua,

 

Marilu”

In Crónicas de um Travesti; carta ao desespero (3)

 

E o cansaço disperso no pavimento como se o sol tivesse deixado de acordar, olho pela janela, chove. Coloco os óculos no meu rosto emagrecido, estou magro, às vezes cansado, poiso a caneta na secretária e enquanto a minha mão fica em liberdade, o poema sobe-me pelo braço até à boca, e nos meus lábios soltam-se sílabas, e sinto as frases voarem pelas paredes do meu quarto, e o poema é poema,

 

Junto à ribeira

Deixo a minha mão adormecida

E nos meus olhos

Vive o monstro da noite

 

Sento-me no xisto esquecido pela tempestade

E as lágrimas invadem o meu rosto

Junto à ribeira

A minha mão que se afoga na água da madrugada

 

E o meu corpo despede-se de mim

Separa-se em pedacinhos

Raios de sol

Que pela manhã entram no meu quarto.

 

Olho pela janela, chove. Pego nos óculos e poiso-os na secretária, dou duas baforadas no cachimbo de água e fecho os olhos.

 

 

 

(texto de ficção)

FLRF

26 de Março de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:59

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