Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

03
Nov 13

foto de: A&M ART and Photos

 

podíamos aproveitar os desenhos da sala de jantar

podíamos fazer das paredes húmidas telas com alegria

e palavras em espuma

à espera do Oceano

sentávamos-nos sobre a soleira da porta de entrada

e esperávamos o regresso das almas impregnadas no mármore livro onde dorme o avô Domingos

é Domingo

visitei-o e percebi que um dia

eu

não tenho quem faça o mesmo por mim

pertencerei a uma sepultura solitária

entre riachos e pedras dentárias

prédios e alicerces de vidro

é Domingo

e o avô Domingo parece satisfeito com a minha visita

não o consigo ouvir

não o consigo ver...

mas sei que ele vagueia nas minhas mãos enquanto nascem delas as palavras dele

 

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha – Alijó

Domingo, 3 de Novembro de 2013

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:54

27
Out 13

foto de: A&M ART and Photos

 

Esqueço-me que a minha velhinha máquina de escrever ainda escreve, apesar da idade, ainda lhe sinto em algumas das noites o pulsar das teclas, às vezes percebe-se que existe um sobressalto, coisa pouca, quase como quando vamos por uma calçada e encontremos uma das pedrinhas salientes, damos um pulhinho, quase que caímos ou não caímos e continuamos as conversas como se nada tivesse acontecido, acontece que muitas da vezes faltam-lhe as palavras, algumas deixaram de existir nela, outras come-as embrulhadas nas também velhas folhas de papel, e ainda tenho o problema da fita, quase inexistente, quase transparente, e vejo as letras como que invisíveis rajadas de vento quando os edifícios da outra margem vergam, ajoelham-se e rezam, e assim vão acontecendo frases, palavras misturadas em negros e vermelhos, rasuradas com o lápis-borracha, e qualquer dia, ela

FIM,

E qualquer dia, ele

FIM,

E qualquer dia, nós

Esquecemos-nos que a nossa velhinha máquina de escrever ainda escreve, pouca coisa, ou quase nada, mas escreve, banalidades, a fulana do terceiro esquerdo diz que o companheiro do quarto direito a agride, o transparente transeunte do rés-do-chão afirma a pés juntos que a menina do sexto frente está quase sempre embriagada

E eu, a velha máquina de escrever, pergunto-me

Que tenho eu a ver com isso tudo, que me interessa a mim, ao papel onde escrevo e à fita que colocas os careceres já gastos no pequeno papel, às vezes tão fino que consegue-se ler do outro lado

Do espelho?

E qualquer dia, ele

FIM,

E qualquer dia, nós

Fartos de ouvir, de ler, banalidades,

Coisas sem significado, fulana põe os cornos ao marido, e depois?

O marido corneia a fulana, e depois?

Que tenho eu, uma velha máquina de escrever com todos esses acontecimentos, e a culpa foi do parvalhão que me tirou da caixa em plástico rijo onde eu habitava, anos e anos encerrada, dormia, sonhava...

E eu, a velha máquina de escrever, pergunto-me

E depois?

“Fodia não fodia” mas percebia,

E depois?

FIM,

Da vida, da escrita, das folhas em papel, e do cheiro a tinta, fazes-me falta quando sentia os teus dedos no meu teclado, e depois de escreveres um poema ou um texto, sentia-te dentro de mim e ele acontecia, o orgasmo maquinal

FIM,

E deixaste de tocar-me e deixaste de escrever em mim e deixaste de olhar-me e pegar-me e acariciar-me e

FIM,

Beijinhos,

FIM.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha – Alijó

Domingo, 27 de Outubro de 2013

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:47

28
Abr 12

Nas paredes curvilíneas da memória

poiso os meus braços de prata

acaricio pacificamente

os meus lábios de incenso

e as pinceladas do meu rosto

vagueiam livremente no vidro transparente

de linho amanhecer

antes do pequeno-almoço

 

oiço a tua voz misturada

nas acácias do fim de tarde

oiço-te enquanto me olho nas paredes curvilíneas da memória

sem palavras sem estória

 

sem nada

 

poiso os meus braços de prata

acaricio pacificamente

os meus lábios de incenso

e nas pinceladas do meu rosto

acorda a madrugada

cresce uma rua sem saída

suspensa numa cidade imaginária

com muitas portas e janelas

e calçadas

e velhos que se esqueceram de acordar

e fingem orgasmos pulmonares

e constroem a felicidade

num vão de escada

sem nada

com barcos mergulhados

em oceanos testiculares

 

sem nada

 

de mão dada

às paredes curvilíneas da memória

os meus braços de prata

pacificamente acariciados

felizes

contentes

tal como os velhinhos

num vão de escada

 

sem nada...

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:50

05
Ago 11

Cada milímetro quadrado da tua pele que acaricio com a minha mão uma estrela se acende no céu,

 

Um eletrão corre apressadamente no espaço e embate nas flores poisadas sobre a mesa da sala, uma cadeira ausenta-se e um lugar fica vago, deixei de existir, e apenas o meu retrato pendurado na parede, alguns livros que sobraram da troca de sopas de peixe e garrafas de vinho, marmelada caseira ao pequeno-almoço entre o pão envelhecido e duro e cansado, formigas atacam-me e sobem-me pelo corpo e entram pelo nariz, oiço na alicerçada mesa da sala a minha voz engasgada, e nos meus pés uma pulseira de metal prende-me à perna da mesa, estou só, completamente só, e depois de proferir estas palavras nunca mais vi e ouvi o meu pai,

 

Contaram-me que desapareceu quando dos cigarros crescia nevoeiro e nos dedos os alicates da tarde e barcos estacionados, deixou a lambreta dentro do álbum das fotografias, atravessa o rio Cuango e pela manhã acorda no antigo Congo-Belga, fez-se à vida, foi protegido pelos soldados da ONU numa fazenda a mendigar arroz com chouriço duas vezes por dia, durante trinta dias, e quando o receituário do doutor Camacho termina regressa novamente a Luanda, tira a lambreta do álbum de fotografias e passeia-se pela marginal,

 

Estaciona-se junto à estátua da Maria da Fonte,

 

Todos morreram excerto eu e a medalhinha que trazia pendurada ao pescoço com a inscrição do número treze, nunca ninguém percebeu porquê o treze e nunca ninguém lhe perguntou, Coisas minhas, dizia-nos ele, e também eu tenho coisas minhas,

 

Um cravo de uma ferradura que me acompanhou durante anos e anos, e que numa noite de bebedeira desapareceu pela janela do quarto enquanto eu dormia aos soluços e em arrepios de frio, existe um crucifixo suspenso num fio de oiro que deixei de usar quando descobri que era ateu e um golfinho em marfim oferecido pelo velho caricas, e três caixas com as porcarias que escrevia na adolescência,

 

E desde que perdi o cravo da ferradura a minha vida começou a andar ao contrário,

 

Agora que estou só nada me prende a esta terra, acordo e a mesma angústia que sempre senti desde que regressei de Angola, a dor intensa no peito, a respiração manhosa e em marcha atrás e o meu vizinho a acenar-me na noite Venha, Venha mais, Venha, Venha ver a merda que fez…, e o meu corpo lançado contra a saliva dos lençóis, e o meu corpo em pedacinhos de manga comido pelas pombas ao final da tarde enquanto o pôr-do-sol se despede do dia,

 

Cada milímetro quadrado da tua pele que acaricio com a minha mão uma estrela se acende no céu, a noite fica dia e o sol adormece nos teus seios de cerejas vermelhas, no teu umbigo deita-se a minha cabeça e do teu púbis oiço a voz silenciosa do mar…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:59

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