Porque se cruza a paisagem,
Quando o rio me olha,
Todas as noites olhava no espelho a sua voz cansada e repetia infinitamente a frase que galgava-se-lhe na cabeça fina da manhã “porque se cruza a paisagem quando o rio me olha!”, não sabia porquê e abraçado ao espelho ficava-se a dormir como rosas no jardim de carvalhais,
O sino da igreja atrapalhado nas três horas da madrugada e dentro dos lençóis as pernas dele que caminhavam na margem do rio na procura de estrelas, a noite descia e poisava na água, e a música melódica dos fingertips entrava-lhe no peito, ele estancava-se junto a uma amoreira e dos lábios deslizavam silabas engasgadas no fumo dos cigarros e ouvia-se no eco da noite Porque se cruza a paisagem quando o rio me olha!,
E pensava na sua voz de submarino afogado no mar A paisagem não existe O rio não existe E eu, eu não existo, e enquanto pegava na beata do cigarro continuava nas frases soltas da garganta Só as rosas de carvalhais é que existem!, voltava um pouco atrás Talvez eu exista!,
- E se não existe rio e se não existe paisagem?, e enquanto caminhava junto à margem um peixe olha-me e saltita na água, sinto que sorri, sinto que me acompanha, eu estaciono-me e ele também se estaciona, e vem-me à ideia E se o sino da igreja não existe e se a igreja não existe?, outro peixe na minha peugada, Dois? Pergunto-me eu, e tenho a certeza que dois são demais, um, um apenas bastava para me atulhar os ouvidos de lágrimas e os olhos de sorrisos,
As rosas de carvalhais tinham um gosto poético a sonho e quando misturadas com as palavras que acordavam na eira o sabor fundia-se na boca e a mistura derretia-se debaixo dos castanheiros, junto ao poço um miúdo atirava pedras e segundos depois o pluf dos gemidos da água,
- E se eu sou um sonho?, e agora dou-me conta que já tenho a companhia de três peixes e não tarda nada tenho um pelotão às minhas ordens, uma comandita de bêbados e fumadores de charros ao pequeno-almoço, abriam o armário e sacavam da espingarda submersa em uísque e o quinto pelotão tombava na parada de instrução, o furriel sorria e explicava ao aspirante Deve ser do vento!,
Perguntavam ao miúdo porque atirava pedras para dentro do poço, e ele respondia ao avô domingos Estou a fazer uma experiência, o avô domingos encolhia os ombros e fingia que era a paisagem, e o rio olhava-o,
- O aspirante nos gritos histéricos do pequeno-almoço Seus filhos da puta!, e da poeira do saibro de agosto a voz começava-se-lhe a encolher nas âncoras dos pés e gritava Todos para a fossa da merda, e o estúpido o primeiro a entrar, e um cagalhão entra-lhe pela janela sem cortinados,
Acorda e vê o sorriso encolhido no espelho a segurar as rosas de carvalhais, e deixa cair a frase no soalho Porque se cruza a paisagem quando o rio me olha!