Traz o vento o beijo invisível aos lábios da princesa, e no castelo adormecido sobre as acácias o meu irmão João enrolado nas manhãs submersas na espuma da solidão,
Caiem pedras sobre o rio,
E a princesa descalça tropeça nas pedras que caiem sobre o rio,
- O meu corpo deseja-se e ausenta-se quando me aproximo das árvores do jardim as pequeníssimas silabas que a princesa deixava cair sobre a areia húmida da noite, e um dia sentei-me sobre as sombras que corriam nos carris com destino a Cais de Sodré, e antes de chegar ao fim do meu trajeto olhei o rio, olhei-o como quando se olha um desejo escondido numa ruela adormecida, e ouvi a voz do rio emaranhada em amêndoas com chocolate, o meu pai pegava-me na mão e procurava na algibeira os cigarros que tinha deixado adormecer no domingo passado, eles cansados, acendia-os e eles recusavam-se a caminhar à nossa beira,
E baixavam os braços,
Quando o castelo começava a acordar e as janelas se abriam para deixar entrar o vento que trazia os beijos invisíveis da princesa e já em pleno corredor brincavam com os sorrisos dos cortinados e se abraçavam à claridade minúscula que se erguia junto ao pavimento,
- E baixavam os braços,
E se abraçavam à claridade minúscula que todas as noites o soalho guardava na mão misera quando no mar o enforcado debatia-se com a maré e a ausência do vento,
- E sem vento não beijos invisíveis,
O meu irmão João que brincava nos altíssimos ramos da acácia frente ao mar, e que corria, e que saltava, e que um dia experimentou a lei da gravidade, e sem gravidade desenhou arranhões nos braços e nas pernas,
- E baixavam os braços e entravam beijos invisíveis pelas janelas, os cortinados baloiçavam como crianças escondidas nos quintais de Luanda, as mangueiras deitavam-se no chão emagrecido e as andorinhas à procura de vogais e frases e restos de poemas,
Numa ruela adormecida, a calçada nos enjoos da manhã depois de uma noite de embriaguez à procura de vogais e frases e restos de poemas, e o meu irmão João de braços cruzados a sentir o mar a entrar-lhe dentro do corpo,
- Sai daí João,
Não, e não saio,
E baixavam os braços na magreza do enforcado, e que não saio berrava o meu irmão, e quero o mar dentro de mim,
- O meu corpo deseja-se e ausenta-se quando me aproximo das árvores do jardim as pequeníssimas silabas,
E que não saio,
Das pequeníssimas silabas o vento que traz os beijos invisíveis da princesa,
- E que não saio,
E que quero o mar dentro de mim, quando a sombra que corria nos carris chegava a Cais de Sodré saía da estação e escondia-se debaixo da rampa na companhia de homens vestidos de mulher, e de mulheres pensando que eram homens,
- E que não saio,
E de mulheres pensando que eram homens e que eram mulheres de garganta aberta e nos dentes as vogais as frases e restos de poemas, e cansaços da vida,
- E que não saio,
Que as andorinhas procuravam junto ao mar.
(texto de ficção)