Vou roer-te os tornozelos seu “monte de esterco” sentenciou o rafeiro enquanto me aproximava, e assim fez, com dois dentes presos por arames ao muro de vedação, zás, a picada minuciosa nas minhas pernas de árvore centenária, das queixadas abertas como a garganta de um vulcão as palavras errantes que se fixavam às minhas calças, a ganga arranhada no silvado de pêlo curto e génio entrelaçado na sombra das bananeiras, e escondia-me e pensava, levas um pontapé nos queixos que até vais ver estrelas, e nem as estrelas caíram do céu, nem o meu pé conseguiu tocar nas queixadas do rafeiro, ele um cagalhão que cabe na algibeira e tão ranhoso e tão guerreiro, e faz-me lembrar aqueles que gritam e gritam e gritam e com um tabefe aterram no pavimentos com a fuça desfeitas em pedacinhos de papel pela gatinha da vizinha,
- Tão gira ela,
A gatinha ou a vizinha?, para mim o rafeiro em sorrisos parvos, e que posso eu responder, que nem uma coisa nem outra, e que não tenho vizinhos, os metros quadrados de quintal começam a encolher na tarde, juntamente com a noite os estorninhos que regressam de mais um dia laboral, as filas intermináveis, os berros das buzinas camufladas debaixo das asas, a paragem obrigatórias nos semáforos com tosse e rouquidão, a poluição da descarga incontrolada de nuvens em decomposição, e passo ao de leve a mão pela cabeça e o cheiro intenso a palha e urina, e escrevo nas paredes,
- Malditos estorninhos,
Os plátanos esperam-nos e o rafeiro louco a correr em círculos desajeitados, grito-lhe anda cá REX, e REX nada, como se eu fosse um “monte de esterco”, e percebo que ele,
- Vai-te foder e deixa-me correr,
A língua pendurada ao canto da boca e o cigarro de lambidela em lambidela extingue-se-lhe e sobram-lhe as cinzas com o cheiro a cio, cabrão de cão, e eu anda cá REX, e o REX levanta a pata e com os dedos constrói uma figa, FOCK YOU,
- E escrevo nas paredes malditos estorninhos que vacilam em todos os finais de tarde,
E todos os finais de tarde este pelintra a roer-me os tornozelos, passa-me as calças a ferro, e quando tinha mais dentes até um par de botas conseguiu furar, sinto a agulha a tocar-me no dedo, e desde aí quando chove em demasia as inundações do costume, as sarjetas entupidas, as folhas que se entranham garganta abaixo, meia volta no estômago e do intestino uma pasta pegajosa, a que o povo apelida de merda,
O quintal agora apenas milímetros quadrados, e eu pergunto-me, e o resto do terreno?, e eu pergunto-me, e as árvores?, e eu pergunto-me e o REX?, e eu pergunto-me, e os estorninhos?, e respondem-me do portão de entrada,
- Todos mortos, na lápide a bravura heróica dos soldados em combate que na guerra das sombras defenderam todos eles, todos eles sem excepção, a missão que lhes tinha sido confiada,
Tão gira ela,
A manhã quando acorda e as gotinhas de orvalho lentamente na minha pele, e no quintal o insuportável do REX a roer-me os tornozelos que abanam na língua da ganga,
O pequeno-almoço na mesa,
E na TV em rodapé junto ao soalho ULTIMA HORA “Moody´s corta rating de Portugal para lixo”, e eu e o resto do terreno e as árvores e o REX e os estorninhos em voz alta, que novidade…