Ouviam-se os petardos anárquicos misturados nas palavras amargas, às vezes, um fino fio de mar corria pela casa, e entre a sala de jantar e a cozinha, flores, tínhamos flores em recipientes cerâmicos, de várias cores, pintavas-os com os restos de tinta acrílica dos meus tubos que ias buscar ao meu atelier, metias as mãozinhas no bibe, e de cabelo balançando dentro do vento que acabara de sair da caixa de madeira, dizias-me
Pai, porque não há pássaros hoje, e perdia-me em explicações complexas, porque estava frio, porque já era quase noite, e porque dentro de casa não há pássaros,
Mas pai, podia vê-los através da janela, ou não,
Não sei, sei, não, sempre tive dificuldade em conversar com miúdos, sempre, e sentia que tinha à minha frente um miúdo com seis anos a perguntar ao pai
Porque voam as mangueiras quando desce a noite, pai?
Porque amanhã é sábado, respondia-lhe ele,
E pai,
Sim filho,
Os barcos pai
Que têm os barcos Francisco?
Os barcos voam?
Não, não voam,
Porquê?
Mas pai, podia vê-los através da janela, ou não,
Não sei, sei, não, sempre tive dificuldade em conversar com os pássaros e com as flores e com a sombra das mangueiras, e
Pai, quando chegarmos a sábado os barcos vão voar?
E
E pai,
Sim filho,
Os barcos pai
Que têm os barcos Francisco?
Não, não vão voar. os barcos não voam, as mangueiras não voam, e o mar
Os barcos pai,
E o mar em finos fios a correr pela casa, ouviam-se os petardos anárquicos misturados nas palavras amargas, às vezes, trazias nos olhos lágrimas de prata, tinhas asas de vidro, e quando te perguntava
Matilde, mexeste nas minhas tintas?
Sorrias, abanavas as asas, e voltavas a sorrir
Não, não mexi, pai
Sorrias, abanavas as asas, e voltavas a sorrir
Pai?
Sim, Matilde!
A mãe?
Que tem a mãe?
Onde está?
Sorrias, abanavas as asas, e voltavas a sorrir, e tínhamos flores em recipientes cerâmicos, de várias cores, pintavas-os com os restos de tinta acrílica dos meus tubos que ias buscar ao meu atelier, metias as mãozinhas no bibe, e de cabelo balançando dentro do vento que acabara de sair da caixa de madeira, aos poucos aproximava-se da grande cidade o paquete com ventos lilases e folhas de árvore empobrecidas pelo sal e devido ao calor, transpiravam os carros junto a Belém
Não sei, Matilde, nunca soube onde está a tua mãe,
E os carros arfavam, e tu sorrias, e eu empoleirado nas grades ouvia os pedaços de fumo do cigarro de um magala que pelo fardamento devia andar nos lanceiro, na Ajuda, sentado e de pernas cruzadas, sobre as coxas via um caderno com uma capa que tinha desenhos de flores, via também um livro “O Doutor Jivago” de Boris Pasternak, e ao longe, nos jardins de Belém dois amantes provavelmente separavam-se eternamente para o todo e sempre, ouvias-lhe
Sim, Matilde!
A mãe?
Que tem a mãe?
Onde está?
Ouvias-lhe as lágrimas de prata e tu, com asas de vidro, sorrias, ouvias-lhe os silêncios entre as árvores e os arbustos,
Tenho de ir
Porquê pai?
Já alguém te disse que tens o coiso grande?
Não sei, Matilde, nunca soube onde está a tua mãe,
E aos poucos Lisboa entrava dentro de mim, e aos poucos sentia a paixão da cidade a entranhar-se nos meus frágeis ossos, de galinha de aviário, e perguntei ao meu pai
Pai, vamos para onde?
Olhou-me, lançou o cigarro ao Tejo, a sorrir e a abanar as asas, sorrias, abanavas as asas, e voltavas a sorrir, Pai?
Vamos para Alijó.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó