Porque o tejo abraçava-se às estrelas de néon e o magala invisível consumia cigarros invisíveis, e um paquete passeava-se e empoleirado na grade um menino de calções que regressava do ultramar, o menino sorria e dizia adeus ao magala, o magala,
- Amas-me?,
- Se não fosses quem és e não tivesses os problemas que tens,
Amava-te muito, e eu perguntava-me,
- Quem eu sou?,
O menino esquecido dentro dos calções e que acenava com a mão ao magala sentado junto à margem do rio, fumava cigarros invisíveis e parecia-me que dormia, não me recordo, foi há tanto tempo…,
- Que a Matilde saiu de casa e levou os filhos, ela revoltada com a minha ausência, as árvores do quintal começaram a escurecer e quando demos conta estavam tombadas no chão, choravam, os pássaros sob o silêncio das mãos,
O velho Armindo às voltas com a roldana da vida,
E a vida sumia-se nas frestas do segundo andar, o tejo subia,
E desciam,
Os pássaros sob o silêncio das mãos quando lhas poisava no rosto e ela dizia-me,
- Se não fosses quem és e não tivesses os problemas que tens,
Amava-te muito, e eu perguntava-me,
Deixei de me perguntar quem sou,
E a vida sumia-se nas frestas do segundo andar, o tejo subia,
E desciam,
As mangueiras que beijavam as sombras do quintal de Luanda, e derreado o velho Armindo tropeçava no triciclo e a vida deixou de andar,
A roldana enferrujada e o menino que baloiçava nas grades do paquete pergunta ao pai Pai o que é neve? Neve? Porquê filho?
- A mãe diz que em Trás-os-Montes neva e é muito frio…, É verdade Pai?,
O meu pai que não É tudo mentira meu filho, tudo mentira,
E percebi que nunca tinha vivido em Luanda e que nunca tinha poisado a minha mão sobre o mar, não vim de paquete Paquete meu filho? Se nós nunca saímos desta terra, é tudo mentira, tudo,
Nem sei quem é a Matilde desabafava o magala quando deixou de acenar ao menino empoleirado nas grades do paquete, E da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
Corpos ensanguentados no desejo do sémen,
- Amas-me?,
Ensanguentados no desejo de sémen que escorria das nuvens de algodão doce e desciam, e subiam,
E da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
Os gritinhos de prazer dos lençóis do cubículo,
- Amava-te muito se não tivesses os problemas que tens e não fosses quem és,
E o cigarro abraçado à solidão da tosse de um petroleiro que descia,
Dos olhos do menino.
(projeto de romance)