Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

31
Jul 11

O velhote arcado na atmosfera com pedacinhos de algodão nos lábios, flor na lapela, sapatos desgovernados e com ar condicionado, calças em cortinado depois da disputa entre o REX e o NOQUI e o sol atravessava-lhe as pernas escuras das sombras da geada, era alérgico à água e todas as manhãs cantarolava melodicamente uma lengalenga que nunca percebi e nem queria perceber, e eu tinha todas as indicações de que ele era muito feliz, não cortava o cabelo nem desfazia a barba e misturavam-se-lhe junto ao peito onde trazia um rádio a pilhas que por falta de pagamento apenas rosnava ruídos inaudíveis e estranhos e que durante a noite assustavam as ratazanas que dormiam junto dele,

Conheci-o na minha adolescência quando eu ainda era eu, quando no céu habitavam estrelas durante a noite e de dia passeavam-se nuvens pela manhã,

O velhote de nome desconhecido e com os alforges atulhados de côdeas de pão há muito esquecidos nos confins das ruas e avenidas da povoação e que se o atirasse contra um pássaro, o pássaro tombava desfeito nas penas da tarde de tão duro era,

E recordo-me do parvalhão que uma altura atirou com um pedação de pão duríssimo contra o candeeiro da messe de sargentos e as lâmpadas em curto-circuito estatelavam-se nos cromados do pavimento, a desculpa pronta na língua que as lâmpadas rebentaram sozinhas, a confirmação do sargento eletricista e o parvalhão que era eu safo de mais um fim de semana em castigo,

O velhote pescava um pedacinho de pão do alforge e dentro da boca apenas dois ou três dentes que abanavam quando junto ao abrigo passava o comboio apressado e sem destino, e a côdea em satos de canguru acabava por esconder-se no alicerce de um dente e rebolava garganta abaixo,

O parvalhão acabava de apostar com os camaradas que partia uma resma de pratos na frente da dona civil que lhes infernizava a vida como se fossem sopeiras ou putas de cabaré, e está apostado diz um deles, e o parvalhão a seguir ao almoço e fingindo que retirava os pratos das mesas quando percebe que nas mãos uma pilha acabava de nascer começa em manobras de diversão, o corpo em rotações no acaso da sala de refeições, as botas em patins pelo mosaico, cai não cai, cai devagarinho e os pratos em migalhas, a dona civil aos gritos, ai os meus pratos, e o parvalhão sorria para a bananeira que dormia no centro da sala, um jarro de litro de cerveja já cá canta,

O velhote desparecido durante alguns dias preocupava-me e perguntava-me onde ele estaria, e descubro-o no interior do casebre entolhado em farrapos e misturado com a lama, o cheiro intenso a mijo, pedi ajuda e já no hospital ajudei a dar-lhe banho, o corpo parecia ripas de madeira penduradas na cobertura inconstante do céu, tempos depois morreu.

E às vezes acontece-me estar no meu jardim a desfrutar da paciência dos cigarros e vejo passar o tio Raúl agachado na sombra e com a cabeça coberta pelo envelhecido sobretudo, chamo-o e não me responde, apenas os ruídos do rádio a pilhas debaixo dos candeeiros,

E de castigo o parvalhão a limpar os castiçais…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:54

17
Jul 11

Sou prisioneiro de uma fotografia

Suspensa na parede da sala,

Fardado sobre um carro militar enferrujado na sombra de Belém, nas botas o esparguete com queijo derretido e ao fundo a ponte que abraça Lisboa e Almada, o rio não o vejo mas sinto o cheiro intenso de perfume que os barcos transpiram de margem a margem, minúsculos automóveis movem-se como mosquitos sobre o estrume esquecido na eira, e o vento ergue-me a boina e depois de alguns metros voando sobre o escaldante asfalto da parada, cai de barriga para baixo e não consegue levantar-se,

- O pânico de perceber que estou sentado num veiculo de museu e de cabeça descoberta, ao cabelo o vento nada faz, porque o meu cabelo ficou junto ao portão quando entrei no mês de maio,

A aflição minha, Será que se magoou?, ao que ela me responde que não, apenas alguns aranhões e pouco menos, mais descansado fiquei,

- Desço como se fosse a sombra no fim da tarde a entrar nas coxas do tejo, dou uns passinhos, baixo-me e apanho-a, e ouço um Ai na voz rouca da boina,

O corneteiro em toques desafinados, a hora de saída, a esplanada frente ao museu dos coches que me espera, a descer a calçada um carro desgovernado e em gritos abstratos,

- Saiam da frente, saiam da frente, saiam da frente,

Os travões em levantamento de rancho, e eu pensava Quem consegue comer esta porcaria?, digam-me, Já viram estas raquetes da tropa?, a solha no tejo a descongelar, e eu voltava a gritar, Já provaram estes malditos cordões da PE?, e o esparguete sonâmbulo no corredor da messe,

- Saiam da frente, e os pés deslizavam sobre o paralelepípedo da descida, E não é que o caralho do carro bateu com a focinheira na esplanada!, o policia agasalhado na multidão a contar a mesma história a cada nova sombra que chegava,

E depois de o ouvir pensei, Foda-se, e se eu lá estivesse sentado como estou em todos os fins de tarde?, a bola de Berlim tombava, a chávena e o pires às cabeçadas contra a retrete pública, desciam as escadas e entravam, e um cabrão a olhar-me a pila como se ela fosse uma rosa nos jardins de Belém,

A sopa de pedra uma merda suspensa na sanita tuca, e duas fardas na brincadeira atiram com uma bota militar para dentro do pote enorme de sopa, as bocas suspensas, e os pensamentos misturados com o vapor da cozinha, E agora?, e alguém se lembrou de procurar a verguinha de aço que servia para desobstruir as condutas do saneamento, arregaçou as mangas da farda e pescou-a,

- A unanimidade na sala de que a sopa estava divinal,

E estava.

E estou, sentado no sofá a olhar para uma fotografia com alguém que não conheço, nunca fui eu, reconheço a ponte, reconheço o carro enferrujado, mas a farda que está sentada sobre ele é-me completamente estranha, e penso, e penso,

- E se algum dia este gajo me entra porta dentro?

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:59

17
Jun 11

Gracias amor…

Adoro-te parvo.

Percebe-se que das nuvens acordam gladíolos e vem-lhe à ideia as amargas palavras do tio Acácio quando pela tarde adormecia junto ao poço, o cigarro pendurado nos lábios, as mãos poisadas sobre o peito, e o tio Acácio em conclusões filosóficas, comparava-se a um cagalhão a boiar na garganta da sanita lá de casa, apenas uma pequena diferença, a cor.

E de pequenino aprendeu que a cor não importa, o poço na secura do verão desalentado de Agosto, os óculos amareleciam com os raios de sol oblíquos, os queixos seguravam-se com dois cordéis que tinha furtado à costura da mãe, e nos olhos duas rodelas de limão para a refrigeração, e a cor encurralada entre a sombra e o pincel que tilintava nos dedos calcinados pela enxada,

- De Cais de Sodré apressadamente para Santa Apolónia, o caracol das 19 horas agarrado ao cansaço dos carris, o automóvel imobilizou-se, a janela desce lentamente, de dentro emerge a farda de gala que o olha e lhe oferece boleia, indeciso, entro não entro, entra, a mochila junto às botas,

De dentro do poço uma voz que pedia ajuda, e as cabras em remoinhos no terreno do vizinho, o tio Acácio pendurado nas nuvens, engasgado na maré junto às rochas, as cabras saltitando de muro em muro, e do poço,

- A mão da farda de gala em carícias nas pernas dele, um semáforo imobiliza-o, o semáforo agarrava-se-lhe ao pénis, pela espinha um calafrio intenso, e da gaita, da gaita a pequinês, diminuindo até desaparecer junto ao rio, paneleiro de merda,

O poço seco, e alguém a afogar-se na sombra.

O corpo começa a estremecer como um veleiro desgovernado, as mãos cruzadas em silêncio, no cérebro circulavam frases, vou foder os cornos a este gajo, abro a porta e salto com o automóvel em andamento, o tio Acácio acorda, levanta-se e olha para a profundidade do poço, nada, apenas o chão térreo e algas vindas da noite,

- Posso convidar-te para sair,

E gracias amor…

Adoro-te parvo, adoro-te quando finges olhar a janela, e sei que me olhas a mim, percorres cada milímetro quadrado do meu corpo, abraças-te como se eu fosse um petroleiro encalhado no Tejo, pegas nos meus seios, poisas-lhes as mãos semi-difusas das ruas da cidade, os prédios escondem-se nos becos, e quando sobes as escadas nos teus olhos de alecrim as gaivotas em desassossego, a fome dos mendigos quando pegas na minha mão, e eu, e o tio Acácio, e o paneleiro, e tu, fartos que este texto termine, e se afunde no poço,

- A pila silenciada durante dois dias, e só ao terceiro ressuscitou, sentada à direita da perna esquerda,

As palavras se afundam no poço.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

17 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:15

12
Jun 11

Um sorriso, não mexe, já está, vê… nas custou nada. Ai não que não custou, custou e muito, custou-me a pose miserável do meu esqueleto, custou-me arreganhar os dentes sem que me apetecesse, porra, custou-me levar com as luzes no focinho, o fato, a gravata, a merda dos sapatos por estrear e a magoarem-me a pontinha dos dedos,

 

- E não custou nada?

 

Só mais uma, agora de lado, sorria… já está, vê, é como quem limpa o rabo a bebés, e nunca mais termina a comunhão solene, despir a porcaria do fato e volta a ser ateu, que coisa, livrinho, luvas nas mãos, terço enrolado,

 

- Foda-se, estou fodido…

 

Terço enrolado, uma tabuleta com um número pendurada ao pescoço, 03166987, B RH+, nas minhas costas aproximava-se o muro amarelo de vedação, ao longe sentia os carros a passearem sobre a ponte 25 de Abril, e o meu corpo aos poucos escondia-se nas sombras que caminhavam no Regimento de Lanceiros 2, calçada da Ajuda, e eu peço ajuda, e nada, Ajuda nenhuma, padre nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, e depois do almoço a procissão no final da tarde, falta pouco para voltar a ser ateu, não mexe, já está, seguinte, e nessa noite bebi tanta vodka que me deixou enjoado durante quinze meses, catorzes meses e um de férias, cinco contos por mês, cama e roupa lavada, bebedeira todos os dias,

 

- Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu,

 

O senhor vigário vagarosamente, os meus pais e os meus avós, felizes, e eu cambaleando junto às árvores na parada, e o vento era tanto que o meu corpo balançava como uma folha de papel pendurada num sorriso,

 

- Este filho da puta outra vez bêbado,

 

E se fosse só bêbado, as sombras formadas, os holofotes ligados, um sorriso, já está, lindo, e o nosso pelotão a mastigar côdeas de pão, um passo à frente, dois à retaguarda, e puta que te pariu que nunca mais me pões os olhos em cima,

 

- Meu tenente os do quinto pelotão são todos loucos, eu dou-lhes a loucura, daqui a pouco vão todos com a focinheira para a fossa da merda,

 

Começava a não suportar o peso do fato, mas livrai-nos do mal, e quando oiço ide em paz e o senhor vos acompanhe, fim, destroçar, toca a correr para a caserna, desembaraçar-me dos trapos militares e, almoço em família, só falta a procissão, e comunhão feita, novamente ateu, novamente em liberdade, mas antes da procissão ainda tive tempo de me embebedar com o capitão e o sargento, vaguear pelas ruas de Lisboa e adormecer num banco de madeira em Santa Apolónia,

 

- Não mexe, um sorriso, isso lindo, já está, vê… não custou nada,

 

Felicidades na vossa vida civil.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

12 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:16

16
Abr 11

A minha vida tremia de frio, e estava em Maio, mas o nevoeiro escondia-se no meu olhar, e tive de correr em busca de silêncio. E as estrelas em lágrimas na minha partida. E eu odeio-te porque és filha da cidade número vinte e cinco do sonho madrugada.

 

Com o dia claramente acordado, porque a noite tinha adormecido, mas esta não era a minha noite, mas uma noite do passado, noite de fantasmas no meu adormecido pensamento, e as putas pareciam gaivotas que planavam junto ao rio.

 

Uma terça-feira triste, não porque o dia fosse triste, mas a tristeza encarnava-se no meu corpo franzino e tímido; um corpo doente de demónios e raízes, que ao fundo do túnel, adivinhava-se um fracasso; o meu primeiro dia de serviço militar.

 

 

 

In Escuridão, 1988

Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:38

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