Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

26
Jul 11

“Peço-te que me ajudes, a mim e a ela, sem te oferecer nada em troca, e se nos quiseres ajudar, nós agradecemos, se não te for possível, compreendemos e não te vamos chamar nomes, e não te vamos insultar, e não vamos de joelhos ou caminhar como loucos, apenas para te agradar, apenas para fertilizar o teu estúpido orgulho, e dinheiro nem pensar, porque não o temos”, gemia o maluco dento da caixa de sapatos.

 

O complexo universo da noite quando desce sobre o tejo nas pequeníssimas roseiras das estrelas e do outro lado da margem o automóvel engarrafado na garganta da dor, treme-lhe a suspensão e dos olhos fundem-se os médios na mesa-de-cabeceira, o cobertor desenlaça-se e encosta-se à ponte, e no travesseiro a cabeça do cacilheiro atulhada de sombras, despeço-me do rio, caminho apressadamente e vou de encontro ao guarda-fato bêbado que procura no rodapé a vodka da noite passada, a mesa-de-cabeceira em ais e no guarda-fato os cabelos que se soltam da peruca embainhada do comboio para o porto, e passando santarém o frio que desce nas costas e acaba por finar-se nos testículos incendiados nas curvas dos carris,

Eu tenho fome, Eu tenho frio, E eu não consigo dormir com este granel todo, detrás de mim ouço uma voz em silabas cansadas, E a mim veio-me a menstruação, as dores de cabeça, a barriga às cabeçadas na porta do estômago, as lágrimas da noite e a perfeita magnitude do meu corpo quando se dobra sobre o tapete, oitenta mililitros de líquido que se abraçam às paredes da lua, e a lua de mão dada com as fases, folicular ovulatória luteiníca, e eu respondo-lhe que descanso nunca fez mal a ninguém, e dizem, e dizem que o próprio deus descansou ao sétimo dia, e alguém pergunta, Sete dias para fazer esta porcaria?, curvas e contra curvas entranhadas nas mãos dos socalcos, pela janela o rio douro que dorme na madrugada, uma estrela aqui e outra ali que espreita nas casas empoleiradas na encosta, e ao longe o cheiro intenso das fases lunares…, e penso, Deve ser o pinhão,

Finalmente. A mochila em construções nas asas da manhã que aos poucos acordava da sombra do douro, pesadíssima, durante a viagem engravidara de um militar enferrujado dos desperdícios da cozinha, junto à piscina, onde se banhavam os cavalos depois de penteados, e quando acordo na gare deserta, ninguém, ninguém esperava por mim, um gato atravessa a carreira de tipo e morre, em pedacinhos as peças espalhadas na arreia, rodas para um lado, faróis para o outro, mais ao lado a cambota que ainda dava roncos, e sargento mecânico a apanhar os pedacinhos para um saco escuro,

Borro-me todo só de pensar que tenho de andar quinze quilómetros a pedantes daqui até alijó, esgrimia-se ele entre os postes de iluminação,

Deixa o pinhão na sombra do rio, passa por vale de mendiz e quando chega à curva apertada da fonte cessa de caminhar, pega na mochila grávida e atira-a rabina abaixo, soltam-se uns gemidos, e nasce o dia.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:49

14
Jul 11

Tire as patas de cima do banco,

Enfunilado o revisor a atirar palavras disfarçadas de pedras aos meus ouvidos,

E eu expliquei-lhe que não tenho patas e tão pouco estacionadas no banco da frente, ele continuou viagem carruagem adentro, pica aqui, pica ali, e o barulho do alicate perdia-se na penumbra dos candeeiros seminus do teto, a luz trémula parecendo intrica, e aqui e ali e do outro lado também, o farol dos cigarros acesos na noite,

- E enquanto a minha cabeça cambaleava na sombra eu pensava, E hoje ainda não houve pancadaria!, que estranho continuava eu,

Que estranho as casas as árvores os jardins os pássaros os carros, a correrem diante dos meus olhos, e o  meu corpo estacionado num banco de napa cinzenta suja e semeada de restos de migalhas,

- Eu estou parado e as casas em movimento lamentava-se o meu companheiro de viagem, e tive de lhe explicar que não, repara digo-lhe eu, o movimento depende apenas do observador, E esperas que eu acredite nisso se eu estou a ver as casas em movimento?,

À nossa frente um casal de velhinhos e uma cesta de vime e um garrafão de vinho e boa vontade, convida-nos e eu respondo que não, e quando dou conta vejo o João atracado ao presunto e em voz alta, Este vinho é bom amigo!,

E devia ser porque ele chiava nas curvas, começava a inclinar o corpo…, e chão, o velhinho ajudava-o a erguer e logo em seguida agarrado ao presunto e ao tinto, e eu achava aquilo tudo um circo ambulante,

- Duas ou três roulotes, muita fome, uma trapezista magricelas, um cão e o cheiro intenso a sopa de feijão, o mágico que engolia argolas e vomitava baralhos de cartas, e meia dúzia de sombras a deitarem restos de moedas para um boné,

Amigo venha aqui enfiar uma buchinha!, chamava-me o senhor de idade, Esse gajo é esquisito, respondia-lhe o meu companheiro de viagem, e o boné a crescer de moedas pretas e sujas, deve dar para o almoço pensava o mágico, talvez dê para batom grunhia a trapezista, talvez chegue para mim sussurrava o cão empalitado junto ao candeeiro do jardim, não obrigado não tenho fome!, desabafo com o senhor de idade,

- O cão cuspia lume,

Deixe estar não me apetece comer, E o senhor é que sabe olhe que é de boa vontade, gente de Trás-os-Montes muito boa, segredava-me a trapezista depois do grandioso espetáculo de fome, e deixei de ver o João, e deixei de ver os velhinhos, e deixei de ver as casa em movimento, e deixei de ver o circo ambulante,

Encosto-me à janela, fecho os olhos, e quando acordo começo a ver os pilares da estrutura da gare de Santa Apolónia a entrarem pela janela, assusto-me, dou um saltinho e caio para o chão, e percebi que tinha chegado a Lisboa.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:14

Agosto 2020
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
12
13
14
15

16
17
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO